Já foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a
multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria
e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos
físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de
sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas
da semana fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e
devastar florestas inteiras em busca de um suposto desenvolvimento.
Peraí, este último ainda é normal. Afinal, será que ser normal - e achar
normais coisas que não deveriam ser - pode ser uma doença?
Segundo
alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal chama-se, segundo eles,
normose: um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso
social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam
à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.
O
conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo psicólogo e
antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e
teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham
trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o
francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil
conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema
em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o
livro Normose: A patologia da normalidade.
No fim dos anos 70,
Crema estava encucado com o fato de muitos autores apontarem uma
"patologia da pequenez": o medo de se deixar ser em sua totalidade. Ele
deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão Erich Fromm
(1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung
(1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade.
Crema misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K.
Chesterton (1874-1936), que disse que "louco é quem perdeu tudo, exceto a
razão", e acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica
pedagógica.
Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele,
"ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um
desequilíbrio crônico e predominante". A normose torna-se epidêmica em
períodos históricos de grandes transições culturais - quando o que era
normal subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que
aconteceu no final do período romano, em relação à perseguição de
cristãos, ou no início da Idade Moderna, com o fim da legitimidade da
Santa Inquisição, ou no século 19, com a perda de sustentação moral da
escravidão. E, segundo Crema, Leloup e Weil, é o que está acontecendo de
novo, com a crise dos nossos sistemas de produção, trabalho e valores.
"O
novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa possibilidade
de sociedade não-normótica ainda são minoria", diz Crema. Enquanto a
maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à
normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado
"normal" das coisas.
Como aquele cara que, mesmo ganhando o
suficiente para fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus
filhos, é considerado vagabundo e louco por, em plena quarta-feira
ensolarada, liberar as crianças da aula e levá-las à praia. Mas como? Em
dia de semana? As crianças vão faltar aula? Pois é. De repente, ele
acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a seus filhos do que
horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável, e doentes
estão os outros?
Desnormotização
Para a
filósofa Dulce Magalhães, que escreve sobre mudanças de paradigmas, o
normótico acredita que geração de renda e falta de tempo para si ou para
a família são indissociáveis. "As pessoas consideram que trabalhar
muitas horas, colocar em risco sua saúde e suas relações é normal", diz
ela. "Mas isso tem um custo pessoal e social alto demais, que acabam
levando a problemas de saúde pública e violência, por exemplo."
Dulce
acha que a cura para a normose está em mudarmos de modo mental,
abandonando o modelo da escassez, que hoje rege o mundo, e abraçando o
da abundância. Ela explica: "Desde a infância, aprendemos que o que vem
fácil vai fácil e que, se a vida não for difícil, não é digna.
Precisamos mudar isso e entender que esforço não é tarefa." Quantos de
nós chegamos em casa reclamando para mostrarmos (a nós mesmos e aos
outros) que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso
trouxesse algum tipo de mérito?
Segundo Crema, cada um de nós tem
talentos diversos, mas "o normótico padece de falta de empenho em fazer
florescer seus dons e enterra seus talentos com medo da própria
grandeza, fugindo da sua missão individual e intransferível". "Quando
temos necessidade de, a todo custo, ser como os outros, não escutamos
nossa própria vocação", acredita.
O carioca Eduardo Marinho, hoje
com 50 anos, percebeu cedo que não queria ser como os outros. Filho de
militar, abriu mão de sua condição financeira e de sua faculdade ao se
dar conta, aos 18 anos, que não queria olhar para sua vida quando velho e
pensar que não tinha feito nada relevante. "Não queria ser bem-sucedido
e me sentir fracassado". Eduardo saiu pelo País pedindo abrigo e comida
em troca de favores e buscando algo que o preenchesse. Depois de passar
por poucas e não tão boas pelo Brasil, deu voz a sua vocação. Hoje é
artista plástico.
Ele acredita que a desnormotização se inicia
dentro de cada um: "Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que
começa a revolução", sugere. Claro que, para isso, não é mandatório
dormir nas ruas. Fazer o trajeto que Eduardo escolheu para si pode ser
perigoso e não há nenhuma garantia de sucesso.
Bug cerebral
A
cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços sociais
podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo
modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças
descobrem suas verdadeiras vocações - em vez de tentar padronizar os
alunos e convencê-los a serem normais.
Mundo afora, estão
surgindo escolas com uma nova lógica, como a Escola da Ponte, em
Portugal. A instituição não segue um sistema baseado em séries, e os
professores não são responsáveis por uma disciplina ou por turmas
específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam definem quais
são suas áreas de interesse e desenvolvem seus próprios projetos de
pesquisa, tanto em grupo como individuais.
Algo similar parece
estar acontecendo no mundo empresarial, onde mais e mais empreendimentos
estão dando voz à liberdade individual. O caso clássico, sempre citado,
é o do Google, cuja sede, em Mountain View, na Califórnia, conta com
salas de jogos, videogames, espaços ao ar livre e tempo reservado para
que cada funcionário desenvolva seus próprios projetos para a empresa,
com total autonomia.
Claro que não há vagas para todos nós no
Google nem para todos os nossos filhos na Escola da Ponte. A cura da
normose não vai ser resultado de uma ou outra iniciativa isolada - ela
só vai ser possível quando houver no mundo gente suficiente disposta a
questionar tudo o que achamos normal.
E talvez isso demore anos
para acontecer. A explicação para isso pode estar num bug que todos
carregamos no cérebro, que tem uma tendência de recusar sempre novos
jeitos de olhar o mundo. É o que explica o psicólogo israelense Daniel
Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em seu livro
Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Segundo ele, nosso cérebro
confunde o que é familiar com o que é correto: ao ver ou sentir algo que
desperta alguma memória, o cérebro define aquele "familiar" como
"correto", da mesma maneira que o novo é decodificado como passível de
desconfiança.
Esse sistema foi muito útil para nossos
antepassados homens das cavernas, que não podiam mesmo sair comendo
qualquer frutinha nova que aparecesse à sua frente. Mas, nos dias de
hoje, que exigem novas ideias para lidar com um mundo em mudança
constante, esse mecanismo cerebral virou um entrave à inovação. Segundo
essa tese, a normose não é uma doença: é uma característica humana,
moldada pela evolução. Ou seja, talvez ser normótico seja normal.
Você tem normose?
Normose
é um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que,
na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à
perda de sentido na vida.
"Que tal olhar para dentro de si mesmo?
É
aí que começa a revolução". Importante notar que, para olhar para
dentro e descobrir sua vocação, não é mandatório dormir pelas ruas do
país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário